Desde janeiro, Pe. Evaristo Debiasi vive em estado vegetativo no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo. Graves complicações, surgidas no momento da anestesia, nos privaram desse grande sacerdote e amigo. Nada indica que retornará a comunicar-se com o nosso mundo e o seu mundo. Vive, mas somente como presença, sem a palavra, sem os gestos. Por esse motivo, escrevo essas páginas a respeito do sacerdote que não viveu para si, mas que fez-se entrega a tantos que o procuraram como diretor espiritual, conselheiro, amigo. Não reservou tempo para si, para sofrimentos pessoais, porque sua vida foi a dos outros, suas dores, as dos que o procuraram.
Evaristo Debiasi nasceu em Barracão, Orleans em 19 de dezembro de 1939, filho de Sílvio Debiasi e Dorvalina Mazon Debiasi.
Estudou no Pré-seminário de São Ludgero e no Seminário Menor Metropolitano de Azambuja, Brusque, onde cursou o Ginásio e o Clássico. Caracterizou-se pela amizade fácil e verdadeira com todos e foi hábil tocador de violino na orquestra que acompanhava o coral do Seminário.
Os cursos de Filosofia e o de Teologia foram completados no Seminário Nossa Senhora da Assunção, em Viamão, RS. Foi ordenado padre por Dom Frei Anselmo Pietrulla, bispo de Tubarão, em 23 de julho de 1967. O segundo semestre desse ano, suas primícias sacerdotais foram vividas na catedral diocesana de Tubarão. Desde Viamão, como seminarista e agora, como padre, característica marcante foi a capacidade de comunicação: a bela voz grave, o porte físico imponente, atraía todas as pessoas que se encontravam com ele e dele recebiam uma palavra clara, amorosa.
Devido à capacidade de comunicação e de orientar com discernimento, em 12 de janeiro de 1968 foi nomeado Assistente espiritual no Instituto Provincial Catarinense em Curitiba, o PAULINUM, onde estudavam os seminaristas maiores de Santa Catarina. Era um ambiente complexo e multiforme, pois devia atender os candidatos ao ministério sacerdotal de todas as dioceses catarinenses, o que significava harmonizar mentalidades diversificadas, numa época de crise marcada pelas incertezas na formação. No mundo, o ano de 1968 simbolizou a ruptura com os valores tradicionais da autoridade, da família, da Igreja. Tudo era contestado sob o slogan “é proibido proibir”. “Sejamos realistas; peçamos o impossível”, foi a divisa do Maio de 68.
O Concílio do Vaticano II terminara em 1965 e sua abertura a uma eclesiologia de comunhão colocava novas perguntas para as quais ainda não se tinha resposta clara, especialmente a “qual é a imagem do padre?”. Discutia-se o exercício do ministério e até se esperava a abertura ao celibato opcional. Numa Igreja ministerial, o que sobraria para o padre? Um tempo rico, mas difícil para os padres orientadores do período: Pe. Afonso Paulo Guimarães, Pe. Osmar Pedro Müller, Pe. Paulo Bratti e Pe. Evaristo.
Devido a seu temperamento conciliador, seu acolhimento de cada seminarista, capacidade de animar e diminuir os dramas pessoais, foi o padre certo na hora certa. Bom número de decisões vocacionais pelo sacerdócio tiveram origem na sua capacidade de aconselhar. Com Pe. Evaristo, ninguém se sentia inútil, nenhum problema era um problemão.
O PAULINUM viveu uma experiência dolorosa em 1970, com a saída para o casamento de seu padre Reitor. Fato inesperado, sem dúvida. Nesse momento, o nome que sanaria o drama e recolocaria o clima de confiança era um: Padre Evaristo Debiasi. E assim, em 17 de abril de 1971 os bispos catarinenses nomearam-no Reitor do PAULINUM. Em 24 de abril de 1971 foi nomeado professor no Instituto Teológico de Curitiba, o ITC. Pe. Evaristo não era somente professor, era o professor. Nesse período, sua alegria de ser padre, a sabedoria nos momentos de conflito, a incapacidade de tratar alguém de modo ríspido foram fundamentais. No atendimento pessoal, problemas e defeitos eram apenas desafios colocados por Deus e vencidos no amor divino.
Havia uma nova situação: o episcopado catarinense decidira, finalmente, sediar em Santa Catarina os estudos filosóficos e teológicos, de modo que, a partir de 1970, não mais foram encaminhados seminaristas para Curitiba, cada diocese procurando um meio de garantir os estudos humanísticos no próprio seu território, enquanto se providenciava a transferência da Faculdade de Teologia para Florianópolis, o que aconteceu em 1973, com a criação do Instituto Teológico de Santa Catarina-ITESC. Os últimos seminaristas do PAULINUM foram ordenados em 1973.
Devido à capacidade comunicativa e espiritualidade pessoal de Pe. Evaristo, os bispos catarinenses indicaram-no para aprofundar em Roma os estudos teológicos, o que ele fez de 1973 a 1975, obtendo o mestrado em Teologia dogmática pela Universidade Gregoriana. Sua presença em Roma, no Pio Brasileiro e na Universidade Gregoriana foi um “sucesso”, no sentido que era procurado por padres e religiosas da cidade para retiros, conferências e aconselhamento. Sua encantadora humildade e palavras de vida eram extraordinárias para as religiosas romanas. Pe. Evaristo não era nenhum mestre na língua italiana, que aprendera no dialeto vêneto mas, por incrível que pareça, fazia-se entender porque, acima de tudo, era um rosto e uma voz a serviço da palavra “amor”. Com uma dúzia de palavras também ministrava palestras em alemão. Magnetizava pela presença humana e espiritual. Essa foi sempre sua arte e virtude.
Ao retornar ao Brasil, em 1976, recebeu duas missões importantes: ser orientador espiritual no Seminário Nossa Senhora de Fátima, em Tubarão, e professor no Instituto Teológico de Santa Catarina, ITESC, em Florianópolis. Ali fez companhia ao reitor Pe. Paulo Bratti e a seu antigo professor, Pe. Ney Brasil Pereira e ao ex-aluno Pe. Orlando Brandes.
Orientou o Seminário Nossa Senhora de Fátima com dois anos de residência, depois viajando semanalmente para oferecer o atendimento. Foi um tempo muito difícil pelas mudanças bruscas introduzidas e que alteraram profundamente o modelo pedagógico do seminário. Apesar disso, foi um tempo de muitas vocações e ordenações, garantindo sempre um razoável número de seminaristas e, depois, teólogos e sacerdotes.
Em 1978 veio residir em Florianópolis, como auxiliar direto do Pe. Paulo Bratti, que preferiu ser diretor do ITESC e ter Pe. Evaristo como Reitor do Seminário Maior em 1979, cargo em que permaneceu até 1982. A partir de 1983, Pe. Evaristo foi diretor espiritual do Seminário e, de modo especial, do Seminário Teológico da Diocese de Tubarão, em Florianópolis, missão que assumiu até os últimos dias.
No final da década de 90 deixou de lecionar, por não lhe sobrar tempo. Ministrava o curso de Escatologia, sobre as realidades últimas da vida humana: morte, juízo, inferno e paraíso. Deixou o magistério também porque sua bondade parecia excessiva, dizia-se, e que ninguém mais iria para o inferno… Pe. Evaristo tinha certeza, pois a última palavra é do amor misericordioso.
A partir de sua chegada à Capital catarinense, seu nome circulou velozmente nas camadas médias e ricas da população. A procura por um atendimento era tamanha que não lhe foi mais possível residir no Seminário, indo ocupar um apartamento no Centro. Falar com Pe. Evaristo dava status, certo extrato feminino chegava a mentir dizendo ter recebido um abraço, um beijo do pobre padre. Era tamanha a confiança nele que lhe foi entregue, pela Casa Civil do Governo estadual, um talão de cheques – sempre renovado, para usar em suas obras comunitárias e de caridade. Pe. Evaristo não quis se comprometer com esse tipo de confiança e entregava o talão a algum estudante de Teologia.
De todo lado surgiam pedidos para conferências, retiros, palestras em colégios, encontros familiares, sempre atendidos. Qual era o segredo desse padre, que não era um intelectual? Era o amor que comunicava, eram palavras certeiras para cicatrizar corações feridos, quase mergulhados no desespero, unindo psicologia profunda e fé. Nenhum coração atribulado saía “impune” de um atendimento. Fazia iniciar um processo de reconstrução pessoal.
Presidente do Movimento Porta Aberta
A ideia do Centro de Interação e Integração Humana de Santa Catarina – Movimento Porta Aberta, partiu do Pe. Paulo Bratti, então diretor do Instituto Teológico de Santa Catarina. Para ele, o pobre ou necessitado deveria encontrar uma porta aberta, alguém que lhe ouvisse as angústias nos momentos mais intensos de sofrimento. Assim, em 31 de julho de 1980 o centro foi fundado, também com o apoio do Pe. Evaristo Debiasi e de Bruno Rodolfo Schlemper (+ 1999).
No início oferecia apenas aconselhamento. A partir do ano de 1985, passou a profissionalizar os atendimentos. Hoje trabalham 40 psicólogos que se revezam de segunda a sexta-feira, das 8h às 12h e das 14h às 18h. Há profissionais voluntários que atuam há mais de 30 anos. Por ano, são atendidas acima de cinco mil pessoas, apenas de Florianópolis. Mas também passam pela Clínica do Porta Aberta crianças, adolescentes, adultos e idosos de Palhoça, São José, Biguaçu, Antônio Carlos e Santo Amaro da Imperatriz. O Centro funciona em Florianópolis, na Rua Álvaro de Carvalho, 155.
Pe. Evaristo e Bruno Schlemper entregaram-se de corpo e alma ao atendimento gratuito de tantos sofredores. Era bela a comunhão entre o Padre e o luterano Bruno. Diante de corações angustiados, cessam as divergências religiosas e brilha a unidade na caridade.
Assistente eclesiástico nacional da AIS Brasil
Fundada em 1947 pelo Padre Werenfried van Straaten, a Ajuda à Igreja que Sofre (Kirche in Not – AIS) hoje é uma Fundação Pontifícia cuja missão é apoiar projetos de cunho pastoral em países onde a Igreja Católica está em dificuldades, quer pela perseguição religiosa por causa de guerras e revoluções, quer pela miséria. Mais de 60 milhões de pessoas são beneficiadas todos os anos por meio dos mais de 5 mil projetos apoiados pela Ajuda à Igreja que Sofre – AIS em cerca de 140 países, incluindo o Brasil. Tudo isso graças aos seus mais de 600 mil benfeitores.
Ao ser convidado, Pe. Evaristo Debiasi não relutou em assumir o ministério de Assistente Eclesiástico da AIS no Brasil. Fez sua casa a ponte aérea Florianópolis-São Paulo. Por sua facilidade de comunicação assumiu programa na TV Canção Nova, também retransmitido por outras emissoras. O programa visa tornar conhecido o trabalho da Fundação “Ajuda à Igreja que Sofre” apresentando suas obras sociais, projetos e carisma, relata os desafios enfrentados pelos cristãos e pela Igreja Católica em todo o mundo, principalmente nos países em desenvolvimento e onde há perseguição religiosa aos cristãos. O programa vai ao ar toda quarta-feira a partir das 12:30h.
Através dos meios de comunicação, Pe. Evaristo também realiza apreciado trabalho de evangelização, salientando sempre o amor de Deus por cada um de nós. É o anunciador do amor.
Com apresentação dele, mensalmente é editada a revista ECO DO AMOR, enviada aos colaboradores e prestando conta da ação caritativa da AIS.
A visita da dor e da cruz
Nos últimos anos sua saúde não foi a mesma, especialmente após sofrer uma queda e apresentar sinais de tumor nos rins. Nada que impedisse seu trabalho, porém. Mas, em 19 de janeiro de 2016 foi internado no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo e, infelizmente, apresentou dificuldades na fase pré-operatória e seu organismo entrou em pane no momento da anestesia. Aquilo que parecia até simples, tirou de Pe. Evaristo a saúde, de modo irreversível.
Seu lema de ordenação presbiteral, impresso no santinho de recordação, foi: “Sacerdote a serviço do Povo de Deus”. E seu pedido: “Tuas orações são a garantia de minha missão sacerdotal”. Tenho certeza das muitas milhares de pessoas que nesse momento rezam por ele, pelo seu sacerdócio, agora fecundo no silêncio da solidão e do sofrimento de um leito hospitalar.
Com informações do padre José Artulino Besen